terça-feira, dezembro 05, 2006

A praxe já não é o que era

Este é um excerto de um livro de Fernando Namora que retrata a tradição académica coimbrã. Neste excerto é retratado um Tribunal de Praxes. Faz-me ter saudades dos tempos que não vivi, porque hoje em dia a praxe é cada vez mais sazonal e sem grande intento. É uma leitura um pouco extensa mas que vale muito a pena. Percam uns 5minutitos da vossa vida atribulada e vão ver que não se arrependem. Se não quiserem ler sejam felizes na mesma.
"Foi empurrado para um quarto de janelas ofuscadas com as capas negras dos estudantes. A única luz do ambiente provinha de uma vela que tinham fixado na calote de uma caveira. Só momentos depois Abílio distinguiu as mulheres nuas desenhadas nas paredes, as mocas, os bacios e as outras ornamentações burlescas que pretendiam caricaturar os covis dos bruxos ou os rituais das seitas de terror.
[...]
De súbito, Abílio viu-se sufocado por uma capa que lhe tinha sido atirada sobre a cabeça e logo depois duas mãos fizeram-lhe roçar pelo rosto qualquer coisa simultaneamente sedosa e repulsiva. [...] Tratava-se de um mocho empalhado que, não se sabia donde, aparecera a ornamentar a mesa, ao lado da caveira.
Distribuíram rapidamente entre os mais velhos os papéis de acusador, de defesa, de juíz - e a cada um foram entregues uns óculos de papel, que logo encavalitaram na ponta do nariz, e ainda barbas e cabeleiras de algodão. A audiência começou com uma pergunta trovejada:
- Diga, verme infecto: quais são os pontos cardeais?
- Responda seu protozoário de trazer por casa!
[...] Um dos colegas segredou-lhe amigavelmente:
- Responda qualquer coisa. Não seja piegas.
- Os pontos cardeais são: Norte, Sul...
- Pare aí, sua besta! Basta de palavrões! Os pontos cardeais são: o Pirata, o Tasco, o Prego e... Mas antes defina o Tasco.
O estudante que se encarregara da sua defesa interrompeu:
-Essas altas especulações filosóficas estão fora das antenas do meu constituinte. Protesto. Vou requerer...
- Não vai requerer coisa nenhuma!....
- Tasco é... uma taberna.
- Burro!
[...]
- Tasco é a Universidade, seu herege! Um santuário estratificado em gerações de estupidez glorificada, onde a sua e a nossa ingenuidade depositam quantias importantes com o fim oculto de se impingirem canudos de papelão a bacharéis sem miolo e sem gramática.
[...]
- Pirata é, ou era..., um ladrão dos mares...Um pirata em suma - concluiu jovialmente Abílio.
[...]
-O Pirata, seu homúnculo rastejante, é um dos antros onde se registam com demasiada regularidade débitos de alimentos indigeríveis e de bebidas de graduação alcoólica rectificada.
[...]
- Quais os autores clássicos da língua portuguesa?
O advogado de defesa protestou:
- Vossas Excelências continuam a abusar de perguntas metafísicas. O meu constituinte decerto só conhece as obras altamente fasciculares do Poeta das Lêndeas...
- A insinuação que acabo de ouvir é deliberadamente ofensiva para o titular de ceptro poético dos Ecos de Freixo de Espada à Cinta. [...]
- Mas os clássicos a que o réu se deveria referir são outros. São os chamados clássicos dos clássicos, ou por outras palavras, os que escreveram as suas obras-mestras com uma pena de pato. São...
-António Duarte Ferreira, autor do Palito Métrico, e o ilustríssimo anónimo do Borda-d'Água.
- O Livro dos Livros...-acrescentou o delegado.
-Sim, mas este tribunal não deve esquecer os autores das agendas das donas de casa, embora nessas se tivesse utilizado a pena feminina, a pena de pata. E ainda os autores dos livros de mortalhas e dos livros de cheques.
[...]
-Passemos à Botânica....Qual o animal que faz excepção às leis da gravidade?
-Não conheço animais em Botânica.
-Heresia, Senhor Juiz! O caloiro atreve-se a discutir os dogmas deste ritual!
-Vossa Excelência exagera! Essa teológicas especulações não constam da sebenta. O caloiro não tem obrigação de as conhecer. Se nos mostrarmos exigentes, o caloiro pensará que os animais que fogem à lei da gravidade são aqueles que, neste tribunal, se apresentam sem gravidade nenhuma.
[...]
-...estávamos então nos animais equilibristas....Ora bem: vou eu esclarecer piedosamente o empedernido cérebro do réu. O animal é a mosca, seu parvo, que faz caca para o tecto em de fazer para o chão. Quer maior ofensa às leis da gravidade?E como você é uma besta incorrigível, não gastemos mais cuspo e vamos à sentença. Capítulo primeiro: o caloiro está condenado à tortura da madureza. Em oito dias terá de definir, em puríssimo vernáculo da Academia, o que vem a ser uma pega e um futrica. E é tudo o que lhe exijo de gramática. Quanto à leitura, condeno-o a ler as horas na torre da Universidade, de noite e de cara tapada. Em química deverá enunciar-nos a fórmula do chifre mole, mas conhecido por apêndice de caloiros. Em botânica descreverá a flor das hemorróidas, o seu perfume e a espécie vegetal a que pertence... Em física o réu deverá provar o teorema de Arquimedes, servindo-se de uma vela acesa espetada nos canais naturais de despejo."
in "Fogo na Noite Escura", de Fernando Namora
***=)

6 comentários:

actros disse...

parece msm mt fixe.... :)
*****

tens d m emprestar.... ;)

so msm tu para encontrares uma reliquia destas....
... :P

bjoes

Mim... disse...

Enfim...
Só quem realmente gosta de praxe aprecia estas pérolas!!
Se isto fosse nestes tempos, ja haveria muito (boa) gente em tribunais de praxe! Agora so pq se manda o caloiro apanhar o sabao Cucu, já "ai jesus coitadinhos coitadinhos"!
A praxe já nao é mesmo o que era.. É ainda há quem queira acabar com isto!! Iluminados...

Saudades do tempo que eu na vivi oh pinha! Mas que razão tens tu! =)
Subscrevo.
Marta Moreira
;)

asdrubal tudo bem disse...

isto era um apraxe com piada agora as coisas que oiço actualmente, e admito estar errado, visam unicamente conseguir a maior humilhação possível

Pinguça disse...

sim asdrubal, é por isso q digo ter saudades daquilo q não vivi.
Lembro-me desde miúda ouvir contar histórias de praxes, por pessoas q as viveram na pele e outras que tinham residências de estudantes e ficava fascinada. Sempre sonhei chegar a este ponto onde tudo seria assim tb p mim. Consegui viver um ano de caloira excelente, com praxes dinâmicas que me puseram a conhecer o curso quase todo, mas qd m mudei p o curso onde estou agora (demasiado elitista para o meu gosto), decidi, simplesmente, nem participar nas praxes, pq no meio daquelas miúdas (sim raparigas praxam raparigas e os rapazes fazem o mesmo aos da sua condição) o que se vê é um desejo enorme de demonstrar que são mais velhas, com mais matrículas e que são melhores.Tem sido uma luta incessante a minha de evitar que se espalhe o medo por entre os caloiros, pq p mim a praxe é uma forma de diversão e integração dos caloiros na comunidade. E a mim parece-me que andar a gritar c os caloiros mal eles dão entrada na faculdade e humilhá-los, nunca foi nem será a melhor conduta para atingir a verdadeira intenção da praxe.
De qq forma COimbra é Coimbra:)
Obrigada pelo comentário.
Beijo=)

Raul disse...

epá... eu fui um praxista convicto enquanto estudante (aliás, tive inclusivè que comprar uma capa e batina nova ao fim de 3 anos devido ao estado lastimável que o uso ininterrupto causou... :S isso que é explicado no texto chama-se grau, e é uma espécie de julgamento de praxe :P muito bom, fez-me relembrar alguns momentos bem porreiros que vivi... alas... vida de estudante... ainda ontem o pessoal da minha tuna me esteve a mostrar o cabelo de 3 caloiros que raparam ONTEM :P ehehehhe

como está a tua cadela já agora?

Pinguça disse...

Raul: entre os rapazes tenho a sensação de que a praxe ainda tem interesse e ainda se mantêm algumas tradições, então nas tunas ainda mais; e é por isso que, muitas vezes digo que gostava de ser gajo!!!lololol!! Eu gostava de viver a praxe na sua essência, divertir-me, fazer com que os outros se divirtam e nunca participar em praxes que promovam a humilhação clara do caloiro (c essas não compactuo mm) ou sequer ver q esse tipo de praxe é praticado.
No entanto, tb entendo que por raparigas o espírito de praxe é um pouco mais dificilde incutir. Os rapazes entram mais facilmente na brincadeira do que elas.
Eu devo ser a única (ou das poucas) que durante o ano de caloira procurou ser trupada (sim eu ñ existo; e não, não consegui tal feito!lolol).

Quanto à minha Laika, a bolinha remendada está cada vez melhor!!! Já ladra, já corre (ainda que n deva), já come e já dorme uma noite seguida sem gemer de dores. Mas se já era uma cadela cheia de mimo, agora está 1000x mais mimada. :) Obrigada pela lembrança;)

Beijo=)